Para
especialistas, problema na saúde foi por gestão cara e queda de receita
O gigantismo da rede com UPAs também foi apontado como pilar para o
colapso
POR CARINA BACELAR E LUIZ GUSTAVO SCHMITT
27/12/2015 6:00 / atualizado 27/12/2015
10:30
RIO - O colapso na saúde do Rio tem um diagnóstico conhecido, e o
paciente só chegou ao estado terminal porque pouco foi feito em relação aos
sintomas. Segundo especialistas, além de evidentes problemas de gestão, que
estão na origem do caos neste final de 2015, a crise tem três pilares básicos:
a rede se agigantou, com o estado passando a prestar atenção básica,
atribuição dos municípios, a partir da criação das UPAs em 2007; a adoção das organizações sociais (OS) como modelo de
gestão, que, sem controle, se revelaram extremamente caras; e o
fator econômico, com a queda de 52% na arrecadação dos royalties do
petróleo só este ano.
Em meio a tudo isso, desde 2009 o orçamento da Secretaria de Saúde
cresceu 116%, passando de R$ 2,4 bilhões para R$ 5,2 bilhões.
O Portal da Transparência do Tribunal de Contas do Estado revela que só as
despesas correntes, que incluem as OS, responderam ano passado por 71,7% do
total do orçamento da pasta — R$ 2,9 bilhões de R$ 4,08 bilhões. Como pano de
fundo, tivemos o fisiologismo político.
O atual secretário, Felipe Peixoto, abandonou o barco com hospitais e
emergências fechando para se candidatar a prefeito de Niterói. Agora, seu
sucessor, Luiz Antônio Teixeira Júnior, que já age como titular, chega
garantindo que é possível “fazer mais por menos”.
GOVERNO ASSUMIU ATENÇÃO BÁSICA SEM TER
COMO BANCÁ-LA
Nos programas da campanha das eleições estaduais de 2014, o então
candidato à reeleição Luiz Fernando Pezão levantava a bandeira das Unidades de
Pronto Atendimento (UPAs), que tinham sido idealizadas para desafogar os
hospitais, embora a atenção básica de saúde seja uma atribuição dos municípios.
Referência nacional e “exportadas” para outros estados e até para a Argentina,
essas unidades eram anunciadas como uma conquista da gestão do ex-governador
Sérgio Cabral na saúde. Ao lado delas, figuravam novos hospitais de referência
— como o Hospital da Mulher, em São João de Meriti, e o Instituto Estadual do
Cérebro, comandado pelo cirurgião Paulo Niemeyer Filho. Pouco mais de um ano depois, a expansão da rede passou de
orgulho da administração a vilã. Os gestores estaduais admitem que o custo da
hipertrofia é insustentável.
Só as 29 UPAs estaduais e os repasses para as 28 municipais custaram R$
740 milhões para os cofres da Secretaria de Saúde este ano. Prestes a deixar o
cargo no auge da crise do setor, o secretário Felipe Peixoto defende, agora, a
municipalização da gestão dessas unidades:
— Não dá mais para o estado fazer atendimento pré-hospitalar. Não tem
sentido o estado administrar UPAs e Postos de Atendimento Médico (PAMs). Ainda
administramos o Samu — declarou ao GLOBO.
De acordo com a legislação do SUS, ao estado, assim como à União, cabe o
atendimento de média e alta complexidade. Por outro lado, municípios de médio e
grande porte ficam responsáveis pelos setores de emergência e atenção básica à
população. Essa norma regula os repasses federais para cada ente.
O governador Luiz Fernando Pezão assume que o tamanho da rede precisa
ser reduzido, sobretudo no que não é de competência do estado. Ele, no entanto,
não adianta se pretende transferir as UPAs para os municípios. Ao ser
perguntado sobre esse ponto especificamente, responde que ainda conversará com
o futuro secretário, Luiz Antônio Teixeira Júnior, que assumirá em janeiro.
— Tenho que diminuir o tamanho da saúde. Somos o único estado que faz
Samu e outras políticas de saúde que não cabem a nós. Não vou fugir da minha
responsabilidade, mas não vou fazer o que não for nossa atribuição — disse
Pezão.
O mea-culpa do governo estadual já sinaliza um futuro impasse. O
prefeito Eduardo Paes afirmou ontem que não tem “condições de assumir toda a
rede do estado”. Para o vereador e médico Paulo Pinheiro (PSOL), integrante da
Comissão de Saúde da Câmara Municipal do Rio, o governo estadual deveria ter
uma previsão de quanto o custeio de hospitais inaugurados poderia onerar a
pasta, o que, na análise dele, teve motivações políticas:
— O governador Sérgio Cabral começou a vender essa ideia e fazer a
secretaria maior do que ela poderia ser. Montou uma rede de saúde acima da sua
capacidade de resolução. Se fosse cumprida a regra (que normatiza as
atribuições dos entes), isso não teria acontecido.
O futuro secretário Luiz Antônio Teixeira Junior centra seu discurso no
gigantismo da rede:
— O Estado do Rio tinha uma condição financeira, e montou-se uma grande
rede, mas hoje a gente tem outra condição financeira. O que vamos continuar
oferecendo? Não queremos fechar nada, mas precisamos avaliar os serviços.
ORGANIZAÇÕES SOCIAIS: ADMINISTRAÇÃO
ÁGIL COM PREÇO ALTO
Aposta para agilizar a prestação dos serviços de saúde, porque o modelo
permite a dispensa de licitações para compras e facilita a contratação de
médicos especialistas, as organizações sociais (OS) podem ter passado de
solução a ingrediente da atual de crise. Entre os motivos, estariam falhas na
fiscalização da gestão dessas entidades por parte do estado, o que teria comprometido
a eficiência e empalidecido os pontos fortes do modelo, além de ter favorecido
o aumento dos custos de operação. Para especialistas, elas seriam soluções mais bem
aproveitadas se não tivessem sido banalizadas e adotadas, principalmente, em
unidades voltadas para procedimentos de alta complexidade.
Hoje, o estado tem dificuldade de sustentá-las: este fim de ano tem sido
especialmente difícil, porque a dívida com as organizações sociais já chega a
R$ 710 milhões. Em 2015, até o último dia 25, de R$ 3,8 bilhões pagos pela
pasta de Saúde, R$ 2,1 bilhões foram destinados a OS.
Segundo o Sindicato dos Médicos do Rio, enquanto um profissional
concursado ganha em média R$ 2,3 mil, um contratado pelo regime da CLT recebe,
por mês, R$ 6 mil. O secretário Felipe Peixoto admite que o modelo é caro e
precisa ser reavaliado:
— A saúde não pode esperar. As organizações sociais funcionam bem com
recursos. Se não tiver verba, não adianta. É preciso repensar esse modelo, já
que o estado não tem capacidade financeira para mantê-lo.
Já o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da
Fiocruz, Valcler Rangel, acredita que a gestão terceirizada por meio dessas
organizações é mais ágil, mas não pode ser banalizada.
— Aqui no estado os fatos demonstram que há problemas com o modelo, que
precisa ser analisado. Dizer que está dando certo é um equívoco. Esse modelo é
muito recente e não pode ser adotado em larga escala, sob o risco de colapsos
diversos na rede — afirmou.
Por sua vez, o professor e chefe do Serviço de Infectologia Pediátrica
da UFRJ, Edimilson Migowski, especializado em gestão hospitalar, ressalta que
as organizações sociais podem “segurar” profissionais experientes e mais caros
no serviço público:
— É uma administração mais ágil. A OS têm uma agilidade administrativa
que todo gestor público gostaria de ter. Eu acho que o problema é falta de
fiscalização.
O governador Luiz Fernando Pezão disse que estuda uma saída para a
gestão:
— Não é fácil termos especialistas como Paulo Niemeyer Filho
(neurocirurgião) atendendo pelo SUS na nossa rede.
SEM PETRÓLEO, CAIXA DO GOVERNO MÍNGUA
Os sintomas que levaram o estado e, principalmente, a prestação de
serviços de saúde à insolvência financeira não surgiram por acaso. Turbinado pelo boom do setor de óleo e gás e pelas
receitas de royalties, o governo aumentou gastos nos últimos anos.
Só para citar o caso específico da saúde, o número de cargos comissionados,
ocupados por pessoas que não têm concurso público, saltou de 613 em dezembro de
2014 para 689 este ano, de acordo com reportagem da TV Globo, quando o colapso
no setor já se desenhava.
Segundo levantamento da Comissão de Tributação da Alerj, as despesas com
servidores da ativa cresceram 54% desde 2010. O salto foi de R$ 10,3 bilhões
para R$ 16,1 bilhões no ano passado. No mesmo período, houve uma alta de 121%
no custeio da saúde, que subiu de R$ 1,9 bilhão em 2010 para R$ 4,2 bilhões em
2014. Esses gastos incluem a prestação de serviços ao estado por organizações
sociais.
A ineficácia da cobrança da dívida ativa tem sido alvo de críticas no
Tribunal de Contas. Hoje, o rombo é de R$ 66 bilhões, mas, em média, a
Procuradoria Geral do Estado só consegue recuperar R$ 300 milhões anuais.
Somente de ICMS, o estado deixou de receber R$ 7 bilhões. Ao mesmo tempo, a
crise do petróleo teve um efeito devastador sobre as contas do governo. Os
repasses de royalties caíram 52% este ano em relação a 2014 (de R$ 8,7 bilhões
para R$ 4,1 bilhões).
No final de 2014, com o agravamento da crise internacional, a saúde
fechou o caixa com uma dívida de R$ 700 milhões de restos a pagar. Um ano
depois, a conta dobrou. Com atrasos que somam R$ 1,3 bilhão, a saúde corre o
risco de não cumprir o investimento mínimo de 12% no setor determinado pela
Constituição.
— Onde esse dinheiro foi parar? O problema é falta de gestão. No início
do ano, sabíamos que estávamos em crise. Se houvesse um planejamento adequado,
isso poderia ter sido evitado — diz a defensora pública Thaísa Guerreiro,
integrante do gabinete de crise estadual, recém-instalado depois de Pezão
decretar estado de emergência na saúde.
Como se não bastasse a penúria, a gestão do secretário de Saúde, Felipe
Peixoto, sofre críticas pela inexperiência e falta de formação técnica na área.
Também é atribuída a ele a responsabilidade pelo aumento do número de cargos
comissionados na pasta este ano. Nas últimas semanas, Peixoto teria perdido o
prestígio nas negociações de pagamentos atrasados a funcionários e
fornecedores. Sua saída foi oferecida aos credores como uma espécie de promessa
de mudança na gestão. O secretário ainda sofreu “fritura” do PMDB na Alerj,
acusado de trabalhar para suas bases em Niterói, onde disputará a eleição à
prefeitura. Ele nega:
— Retomamos obras paralisadas no estado. Inaugurei clínicas na Baixada,
no Rio e dei continuidade a uma obra de hospital em Nova Friburgo.
O novo Secretário de Saúde, Luiz Antônio Teixeira Júnior, que assume em
janeiro, promete um choque de gestão, com corte de comissionados. Outra
estratégia é aumentar o teto de repasses da União:
— O Rio recebe R$ 45 milhões por mês no teto de (procedimentos) alta e
média complexidade. A Bahia recebe R$ 112 milhões.
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